Educação financeira come a cedo
Imagine um guarda-roupa — quase sempre feminino — recheado com 40 pares de sapatos diferentes. Parece muito, mas quase sempre, quando encontra uma loja, a pessoa resolve comprar mais um par, com a justificativa de que não tem nenhum daquela cor, ou com aquele salto, ou daquele modelo. Algumas vezes, a justificativa ainda é o merecimento, uma forma de se recompensar pelo esforé o do trabalho duro de todos os dias. Poré, o que diferencia essa situação de outras tantas relacionadas é compra de um produto é a inten o. “Isso é desejo e não necessidade. é preciso saber diferenciar essas duas coisas”, explica Reinaldo Domingos, presidente da Associação Brasileira de Educadores Financeiros (Abefin).
Responsé vel por ministrar cursos de educação financeira em escolas — com um pé blico que já chegou a 200 mil alunos — Domingos conta que o exemplo do guarda-roupa feminino no início desta maté ria não é mero acaso. Pesquisas realizadas com as crianças participantes do projeto e suas famílias, que apontaram detalhes de seu planejamentomensal, apontam que os pais gastam cerca de 30% mais com as filhas meninas que com os meninos. “Alguns relatos dão conta de que com as filhas se gasta o dobro”, comenta. A explicação, segundo Domingos, é relativamente simples e percepté vel no nosso cotidiano: a vaidade feminina come a desde muito cedo. “As meninas tem coisas ligadas ao seu universo que os meninos não tem . Elas tem mais flores, mais cor, querem vestidos, sandé lias, acessérios. Sé o muitas as variantes.” Além da oferta maior de produtos voltados ao universo feminino e uma abordagem maior també, da publicidade, para esse pé blico, a pré pria família, por vezes sem perceber, incentiva essa vaidade desde muito cedo. Não é raro encontrar mamões de bebé meninos relatando que tem que desembolsar muito menos para fazer o enxoval de seus filhos. Isso porque as meninas, mesmo antes de nascer, já estão recheadas de laé os, variantes de modelos de roupas e detalhes tipicamente do universo feminino. é medida que essa menina vai crescendo, somam-se ainda itens de higiene e beleza que são, comumente, mais consumidos pelas mulheres — em razé o de sua preocupação com a aparé ncia.
Essa diferené a de comportamento de consumo entre os gé neros, ainda na infé ncia, até poderia ser inofensiva se não fosse um fator: o perigo de transformar uma menina numa mulher adulta consumista, que vé sofrer com a falta de controle de sua vida financeira. “Um dos maiores vilões da saúde financeira dos brasileiros é o hábito da satisfação pelo consumo, que costuma ser iniciado na infé ncia e juventude. Uma criança que é incentivada a ter sempre itens novos para se sentir be, corre o sério risco de se tornar um adulto endividado, inadimplente e possivelmente infeliz, pois não aprendeu a priorizar a conquista dos seus verdadeiros sonhos”, alerta Domingos. “Aconselho que os pais demonstrem a suas filhas que o dinheiro está em tudo — naquilo que elas compra, doa, troca, reutilizam e também jogam fora”, explica o consultor.
O dinheiro compra sonhos
Domingos ensina que o primeiro passo para ajudar as crianças a lidarem com o dinheiro é fazé -las entender a diferené a entre o desejo e a necessidade. No exemplo citado no início dessa maté ria, se a dona do guarda-roupas cheio de pares de sapatos estiver viajando numa cidade distante e, por acaso, um de seus sapatos quebrar o salto, ela vai comprar um novo — ainda que tenha na sua casa outros tantos. Mas como, nesse momento, ela não tem acesso aos sapatos de seu armário, trata-se de uma compra por necessidade. “O produto é o mesmo, mas a situação é bem diferente.”
Ensinar a comprar aquilo que precisa e não o que simplesmente se quer é um bom passo para que as crianças cresé am mais concientes sobre o valor do dinheiro. E para conseguir deixar de lado o desejo, uma boa saé da é apostar nos sonhos. “O dinheiro é capaz de comprar sonhos. Guardar dinheiro num cofrinho alimenta sonhos que podem ser realizados. Ainda que, com duas moedas, uma seja destinada ao sonho e outra ao desejo”, declara Domingos. Incentivando as crianças a se conhecere, a reconhecerem seus desejos, o que mais gosta, o que querem alcané ar dentro de algum tempo (um mês, um ano), fica mais fácil fazé -las entender que é preciso poupar para que isso aconte a. “Ela precisaré passar por um processo de escolha, saber quanto custa, qual o valor daquilo que ela tanto deseja. E essa educação não é com números, isso é uma cié ncia humana, de comportamento e hábitos construé dos ao longo do tempo.”
O consultor explica que a partir dos 3 anos de idade as crianças já come am a entender essa relação entre ganhar dinheiro e comprar. Nesse processo, vale questionar — e explicar — como vai ser possé vel conseguir o dinheiro para a compra de determinado item que a criança deseje e a reflexé o sobre esse ato. “Um boa perguntar é : será que comprar mais um brinquedo é tão importante quanto realizar o seu sonho? é uma situação diretamente ligada é tomada de decisões.”
Falar parece fácil. O difácil mesmo é conseguir dar o exemplo. Um pai que presenteia o filho com um doce de R$ 4, todos os dias, terá gasto R$ 14 mil com isso ao longo de dez anos. “O problema não é o doce, é o que se está representando com isso”.